Lúcio, respeito profundamente sua opinião. Entendo sua preocupação. É legítima. E tem fundamento. Me atrevo a ponderar alguns aspectos.
Você menciona que a análise possível é uma “comparação não muito criteriosa e quase binária, ou seja, a descrição é compatível com o edital ou não é”. Poderíamos automatizar, então, não acha? Criar alguns parâmetros, ensinar o robô a ler as descrições e comparar, de forma simplificada. Me parece fazer mais sentido do que o esforço humano numa tarefa com pouco critério, só pra afastar o que for muito bizarro.
Também me pergunto qual o nível de risco desse tipo de problema. Qual o percentual de propostas merece ser descartado sumariamente e vem sendo descartados nos últimos anos? É frequente? Rotineiro? Raro? É com base no risco que devemos planejar os controles.
Existem recursos quando ocorrem essas desclassificações? Ações judiciais? Quais os efeitos dessas ocorrências?
Fico me perguntando, também, qual o percentual de fornecedores que, ofertando objetos bizarros - até com marca inventada - são punidos por essas barbeiragens. Deveriam ser, pela regra da lei do pregão.
Juridicamente, há uma certa controvérsia quanto ao momento de avaliar a especificação nas propostas.
Na Lei, abertos os envelopes, procede-se à "verificação da conformidade das propostas com os requisitos”. Mas a mesma Lei também define, no inciso XI do art. 4, o exame da proposta classificada em primeiro lugar, “quanto ao objeto e valor”. Afinal, examina quando? Antes, de todo mundo, ou depois, só do primeiro colocado? Ficou confuso.
Pelo Decreto 3555, o pregoeiro abre os envelopes de propostas e classifica. Não se fala nada sobre avaliação de conformidade nesse momento. Só tem previsão disso mais tarde (inciso XII do art. 11), quando, encerrada a etapa competitiva, o pregoeiro “examinará a aceitabilidade da primeira classificada, quanto ao objeto e valor…”.
Faz sentido dois momentos de análise? Talvez, se o nível de rigor for diferente. Primeiro, uma olhada rápida, depois, uma avaliação criteriosa.
No Decreto 5450/2005, a coisa ficou diferente. No art. 25, era previsto que “encerrada a etapa de lances, o pregoeiro examinará a proposta classificada em primeiro lugar quanto à compatibilidade do preço”
Opa. Então, no pregão eletrônico, tinha que analisar a especificação de TODAS as propostas, ANTES dos lances. De modo criterioso, porque, depois, só se olhava o preço.
Hoje, vale o Decreto 10.024/2019, que se aproximou do regulamento geral: “Art. 39. Encerrada a etapa de negociação … o pregoeiro examinará a proposta classificada em primeiro lugar quanto à adequação ao objeto e à compatibilidade do preço …”
Então, pelas regras atuais, pelo menos pra quem segue o Decreto federal, no pregão eletrônico, existem dois momentos de verificação das propostas: antes e depois dos lances. Antes, de todos. Depois, do primeiro colocado.
O TCU tratou do tema recentemente, no Acórdão 1168/2020-Plenário, em que ficou consignado:
inoportuna profundidade na análise da proposta, quanto ao objeto, antes da fase competitiva… sendo que o exame das propostas, nessa fase inicial, deve ser sumário e sintético, cabendo a desclassificação da proposta por desconformidade apenas em hipóteses grosseiras, em que o licitante oferece objeto de gênero distinto daquele previsto, deixando para após a fase de lances, nos termos do art. 4º, inciso XI, da Lei 10.520/2002, a análise mais detalhada da proposta, quanto ao objeto e valor, quando, inclusive, podem ser realizadas diligências para sanar dúvidas, a fim de verificar a real compatibilidade entre o bem ofertado pelo licitante e as exigências editalíssimas, em privilégio aos princípios da competitividade, do formalismo moderado e do interesse público e em consonância com a jurisprudência deste Tribunal (Acórdão 2154/2011-TCU-Plenário, Ministro-Relator Walton Alencar Rodrigues; Acórdão 2077/2017-TCU-Plenário, Ministro-Relator Augusto Sherman; e Acórdão 539/2007-TCU-Plenário, Ministro-Relator Marcos Bemquerer) .
Vale a pena citar a instrução do processo, feita pela Selog. Ali, os auditores do TCU afirmaram:
a verificação minuciosa deve ser realizada somente depois dos lances. Antes, compete ao pregoeiro tão somente uma averiguação sumária da compatibilidade dos objetos e da exequibilidade dos preços constantes nas propostas, ou seja, se o objeto não é estranho àquele descrito no edital e/ou se os preços ofertados não se revelam manifestamente inexequíveis.
A respeito, o professor Jair Eduardo Santana (SANTANA, Jair Eduardo. Pregão Presencial e Eletrônico: sistema de registro de preços: manual de implantação, operacionalização e controle. 3. ed., rev. e atual., Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 273-275) expõe:
Sem preocupação com rigorismo terminológico, parece-nos que a sistemática do pregão induz necessariamente à verificação preliminar da proposta no sentido de aquilatar a sua conformação com as exigências e especificações do edital. Nesse passo, realiza-se num primeiro instante o exame de adequação substancial ou essencial entre ‘aquilo que se oferta’ (licitante via proposta) e ‘aquilo que se pede ou deseja’ (administração via edital).
É dizer, se a Administração Pública quer canetas esferográficas azuis, não poderá ser admitida no certame proposta que tenha ofertado canetas esferográficas vermelhas, ainda que o aspecto ‘preço’ atenda aos parâmetros postos.
Atestada positivamente a conformidade em relação à essência/substância, outra análise há de ser feita no instante seguinte. Desta vez em relação ao valor.
Nesta mesma linha, Marçal Justen Filho (JUSTEN FILHO, Marçal. Pregão, Comentários à legislação do pregão comum e eletrônico. 6 ed. ver. atual. São Paulo: Dialética, 2013, p. 159) leciona que “o que se pode admitir é que o exame das propostas, nessa fase inicial [julgamento das propostas], seja sumário e sintético”. Como bem aponta o renomado doutrinador, esta avaliação preliminar não deve ser aprofundada, a ponto de, desde já, aferir a real incompatibilidade do objeto ofertado com os específicos padrões de qualidade exigidos, cuja necessária constatação deverá ser feita somente após a conclusão da fase de lances, lançando mão, se for o caso, de diligências.
O Tribunal de Contas da União também se posiciona neste sentido, conforme jurisprudência observada em vários acórdãos, tais como Acórdão 2.154/2011-TCU-Plenário, Ministro-Relator Walton Alencar Rodrigues; Acórdão 2.077/2017-TCU-Plenário, Ministro-Relator Augusto Sherman; e Acórdão 539/2007-TCU-Plenário, Ministro-Relator Marcos Bemquerer, cujo seguinte trecho do Voto, no qual reproduz lições do supracitado doutrinador Marçal Justen Filho, traz bastante clareza sobre o tema:
- No que se refere à fase de verificação da conformidade das propostas de preço, consigno que o assunto foi objeto de estudo na obra “Pregão - Comentários à Legislação do Pregão Comum e Eletrônico” (São Paulo: Dialética, 2004, 3ª ed.), de autoria de Marçal Justen Filho, diante de sua relevância e da aparente contradição entre a Lei n. 10.520/2002 e o Decreto n. 3.555/2000, in verbis:
“O que se pode admitir é que o exame das propostas, nessa fase inicial, seja sumário e sintético. A natureza dinâmica do pregão exclui a realização de diligências, pesquisas ou investigações que demandem tempo ou suspensão do certame. O pregoeiro verificará as propostas, formulará indagações e concederá a todos a faculdade de manifestação. A decisão deve ser imediata, respeitando-se o direito de ampla defesa do interessado. Havendo dúvidas ou controvérsias, a decisão deverá ser fundamentada, ainda que sinteticamente. O interesse da rapidez e a natureza sumária da cognição realizada nesse momento não autorizam decisões imotivadas.
Em suma, se o ato convocatório descrever o objeto em termos muito sumários e genéricos, a desclassificação da proposta por desconformidade apenas poderá ocorrer em hipóteses grosseiras, em que o licitante oferece objeto de gênero distinto daquele previsto. Será diversa a situação sempre que o edital estabelecer requisitos mínimos de qualidade (…). Nesse caso, deverá verificar-se se a oferta se refere a bem ou serviço compatível com o disposto no edital.
De todo o modo, não cabe disputa mais aprofundada nessa etapa inicial. O pregoeiro deverá examinar a proposta e verificar se a descrição ali contida corresponde àquela adotada no edital. Em caso positivo, reputará classificada a proposta. Não é oportuno questionar, nesse momento, a compatibilidade real entre o bem ofertado pelo licitante e as exigências editalícias (…).
Abertos os envelopes de propostas, o pregoeiro deverá verificar a regularidade formal e material delas. Lembre-se que toda essa atividade deverá realizar-se de imediato, tão logo abertos os envelopes de propostas. O exame da regularidade formal e material deverá ser facilitado por critérios simples e objetivos, adotados no edital. O pregoeiro deverá desclassificar as propostas inadmissíveis e irregulares, selecionando apenas as que preencham os requisitos devidos.”
Ou seja, mesmo sendo necessária a realização da análise preliminar das propostas em relação aos requisitos do objeto, entende-se que o pregoeiro deve agir com maior cautela e razoabilidade, evitando a desclassificação sumária de propostas. Tal medida visa resguardar e priorizar, sobretudo, os princípios da competitividade, do formalismo moderado e do interesse público.
Franklin Brasil
Autor de Como Combater o Desperdício no Setor Público
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