Limites de atuação do agente de contratação

Pessoal, boa noite.

@FranklinBrasil, após seu comentário na minha postagem e depois de ter pensado bastante sobre essas questões nos últimos dias, resolvi fazer um tópico específico para tratar dessas questões relacionadas à atuação do agente de contratação. Depois dessa postagem, conversei com algumas pessoas e uma delas sustentou que a competência para tais questões seriam mesmo da equipe técnica, uma vez que todos temos que estar apropriados das questões administrativas.

Fico me questionando se, de fato, é isso. Óbvio que temos que nos apropriar de questões administrativas. Mas se todas as questões jurídico-procedimentais devem ser decididas pela área técnica, por que termos áreas administrativas nos organogramas dos órgãos? É correto pensar o agente de licitação como operador de sistema e chancelador de documentos (SICAF, Cadin, por exemplo)?

Reproduzo abaixo as situações que relatei no outro tópico.

“Em uma licitação com DEMO e consequentemente, planilha de custos, a Equipe de Planejamento monta a planilha com detalhamento de custos para compor o valor estimado. A quem compete a análise dos elementos incluídos pela licitante? É correto que o agente de licitação envie a planilha de volta para a equipe de planejamento (em que não há membros administrativos e sem que haja designação de equipe de apoio) para que ela avalie todas as questões envolvidas. Por exemplo, a expectativa seria de que a equipe solicitasse comprovação de exequibilidade de proposta com valor muito baixo ou verifique eventuais jogos de planilha. O agente de licitação não deve ter uma atuação mais ativa nesse processo?

Nessa mesma seara, em uma licitação de material, o fornecedor envia uma proposta com item de marca A (que não atenderia o TR). A equipe técnica solicita diligência para averiguar certas especificações técnicas. O fornecedor responde alterando o item proposto para a marca B (que atende ao TR). A equipe técnica informa que houve essa alteração de marca e o agente de licitação solicita que a equipe técnica informe se é possível ou não aceitar a alteração de marca. Novamente, o agente de licitação não deveria ser a autoridade que avalia esse tipo de questão, busca os subsídios nas normas vigentes e resolve?

Numa terceira situação, o TR estabelecia um valor como fixo e que não deveria ser objeto de lances. O licitante acaba cadastrando proposta R$ 0,98 mais barato do que deveria. O próximo colocado tem uma proposta cerca de R$ 40.000,00 mais cara. O agente de licitação está pedindo que a equipe técnica diga que ele pode aceitar a proposta porque essa diferença não irá impactar. Vejam bem, entendo que não vai mesmo e reforço que o formalismo moderado é diretriz do regulamento de compras do órgão. Mas quem deveria trazer essas questões não deveria ser o agente de licitação?

Acho que me estendi muito e extrapolei o tópico inicial. Mas já fui agente de licitação e coordenei área de licitação por muito tempo. Hoje estou atuando coordenando áreas demandantes e fico bastante frustrado quando vejo esse tipo de conduta. Pode até ser que eu esteja entendendo errado a função do agente de licitação e que, de fato, todas essas questões devem mesmo ser tratadas pelas equipes técnicas. Queria trazer essas questões aqui porque a equipe que fala é sempre muito qualificada e colaborativa. Já agradeço a todos.”

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@Fernandopalhano, que tópico necessário. Obrigado por suscitar o debate. Matutei bastante antes de responder.

Vou organizar em blocos: (1) expectativa legal e (2) desdobramento prático.

1. O que a Lei 14.133 espera do pregoeiro

Aqui aparece a pista de que não é “operador de sistema”, mas figura central da fase de seleção do fornecedor:

“para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento e executar quaisquer outras atividades.” (art. 8º)

E o §1º aponta responsabilidade individual.

Ou seja:

  • não é mero carimbador de opinião técnica;

  • não substitui a opinião técnica em análise de mérito.

Esse equilíbrio aparece em vários normativos e debates do Nelca. No tópico “Responsabilidade na análise das propostas” se lembra, por exemplo, que a área técnica apoia na análise das propostas, mas quem julga é o pregoeiro, justamente para não “terceirizar” a responsabilidade do julgamento.

Na discussão “Quem podem ser os agentes competentes a atuar em cada fase da licitação?”, aparece a estrutura clássica da equipe de planejamento:

  • integrante requisitante (necessidade);

  • integrante técnico (objeto/mercado);

  • integrante administrativo (licitação).

Na fase externa, é natural que essa tríade continue existindo como apoio ao agente de contratação – mas o “centro de gravidade” da decisão procedimental está com ele.

2. Distribuição de papéis em linhas bem gerais

De forma bem pragmática, eu enxergo assim:

  • Área técnica / equipe de planejamento

    • estuda necessidade, seleciona solução, define especificação, critérios de aceitabilidade, estimativas etc.;

    • diz se o que o fornecedor oferece atende ou não ao que foi especificado;

    • analisa exequibilidade técnica, compatibilidade de marca/modelo, desempenho, etc.

  • Pregoeiro

    • conduz o rito procedimental, negocia, decide desclassificação/aceitação;

    • avalia o impacto jurídico/procedimental de cada escolha (isonomia, vinculação ao edital, formalismo moderado);

    • articula as manifestações: técnica, jurídica, controle interno.

Em resumo:
técnico diz “atende / não atende”;
agente diz “pode / não pode à luz do edital, da lei e da jurisprudência”.

Com isso em mente, acho que dá pra olhar os seus três casos.


3. Caso 1 – Planilha de custos, DEMO e jogos de planilha

A equipe de planejamento monta a planilha… A quem compete analisar os elementos incluídos pela licitante? É correto o agente devolver pra equipe técnica e ela, sozinha, avaliar tudo?

Aqui me parece que tem duas coisas diferentes:

  1. Análise de mérito econômico e técnico da planilha

    • exequibilidade;

    • desequilíbrios relevantes entre itens (jogo de planilha que compromete execução);

    • compatibilidade com o modelo de execução do objeto.

    Isso pode ser matéria típica de área técnica, porque pode exigir conhecimento do mercado, da rotina de execução e da formação de custos daquele serviço específico. Se for um serviço padronizado, já conhecido e de parâmetros comuns, pode ser que o próprio pregoeiro seja capaz de avaliar.

  2. Conclusão procedimental (desclassifica, negocia, saneia?)

    • aqui entra forte a atuação do agente de contratação.

O que não faz sentido é o agente se limitar a “repassar e carimbar” o que vier de volta. Ele deveria:

  • solicitar nota técnica da equipe de planejamento (ex.: “há indícios de inexequibilidade?”, “há risco de jogo de planilha que inviabilize o objeto?”);

  • a partir disso, enquadrar juridicamente: é vício sanável? é caso de diligência? cabe negociação? ou é vício insanável que leva à desclassificação?

A própria Lei 14.133, quando fala em saneamento de falhas e formalismo moderado, empurra na direção de um agente que pensa o caso concreto, não de alguém que apenas remete tudo para a área técnica e depois “lava as mãos”.


4. Caso 2 – Mudança de marca na proposta

Fornecedor propõe marca A (que não atende). Em diligência, responde com marca B (que atende). A equipe técnica diz que B atende, e o agente pede que ela diga se é possível aceitar a mudança de marca.

Aqui a divisão de papéis fica ainda mais clara, a meu ver:

  • Área técnica: diz apenas se a marca B atende ou não ao TR.

  • Pregoeiro: decide se, juridicamente, essa mudança é ou não admissível no estágio em que o processo está.

Questões como:

  • isso configura alteração de proposta que afeta a isonomia com os demais licitantes?

  • a diligência está sendo usada para corrigir erro formal ou para permitir uma troca inaceitável depois dos lances?

  • o edital previu ou vedou expressamente trocas de marca na fase de diligência?

são tipicamente jurídico-procedimentais. É aqui que a Lei 14.133, os regulamentos e a jurisprudência entram – e quem faz essa leitura deveria ser o pregoeiro (com apoio do jurídico, quando necessário), não a área técnica.

Então, respondendo à tua pergunta:

“Novamente, o agente de licitação não deveria ser a autoridade que avalia esse tipo de questão, busca os subsídios nas normas vigentes e resolve?”

Sim. A área técnica não tem por que “autorizar” juridicamente a troca de marca. Ela só diz: “B atende tecnicamente”. O passo seguinte é do agente.


5. Caso 3 – Item com valor que não poderia sofrer lance (R$ 0,98 a menos)

TR fixou valor que não deveria receber lances. Licitante cadastrou R$ 0,98 mais barato. Próximo colocado está ~R$ 40 mil mais caro. O agente pede para a equipe técnica dizer se ele pode aceitar a proposta porque a diferença é pequena.

Aqui a situação é ainda mais emblemática.

  • O “erro” parece claramente formal (R$ 0,98 de diferença em item que deveria ser fixo, representa quanto em percentual?).

  • A questão é 100% procedimental:

    • isso é vício sanável ou insanável?

    • posso ajustar para o valor correto mantendo a classificação?

    • estou violando a vinculação ao edital ou estou aplicando formalismo moderado em favor do interesse público?

Esse é o tipo de situação em que debates do Nelca e o Acórdão 1.211/2021-TCU (citadíssimo em “TCU: sanear documento em licitação. A prevalência do fim sobre os meios”) defendem que:

  • a Administração pode e deve sanear falhas que não afetem a essência da proposta, a isonomia nem a competitividade, privilegiando o resultado para a sociedade;

  • a vedação à juntada de novo documento ou alteração de proposta não alcança a correção de erro material, quando a condição já existia e o ajuste não distorce o julgamento.

Sob a ótica da Lei 14.133:

  • a própria lei fala em corrigir vício sanável (Art. 59, I e V; Art. 71, III)

  • se o ajuste (ou manutenção) de R$ 0,98 não muda a posição da empresa, não onera a Administração e não afeta os demais licitantes, a tendência poderia ser considerar o erro sanável, com decisão fundamentada.

De novo: quem tem de fazer essa ponderação é o agente de contratação, eventualmente ouvindo a área técnica somente se a redução desse item tiver alguma repercussão técnica (o que, pelo teu relato, não parece ser o caso).


6. Então… até onde vai o agente de contratação?

Resumindo a minha leitura:

  • Não faz sentido transformar o agente de contratação em digitador de sistema.
    A Lei 14.133 o colocou no centro da fase de seleção exatamente para que haja um “dono” do rito, capaz de tomar decisões e responder por elas. Se for pra apertar botão, logo teremos o pregoeiro-robô, substituindo plenamente o humano-carimbador.

  • A área técnica não é “jurídico”.
    Ela responde pelo conteúdo técnico: especificações, aderência da solução, exequibilidade material do objeto.

  • Questões jurídico-procedimentais (sanear x desclassificar, aceitar mudança de marca, interpretar regra editalícia, manejar negociações, recursos etc.) são, em regra, atribuição do agente, com apoio:

    • da equipe de apoio (visão administrativa);

    • da área técnica (visão de objeto);

    • da assessoria jurídica e do controle interno, quando o caso exigir (visão interpretativa das normas)

  • Matriz de responsabilidades ajuda muito.
    O ideial é ter normativo interno ou manual de procedimentos que deixem claro:

    • quem responde pelo quê em cada etapa;

    • quais manifestações são de apoio e quais são de decisão;

    • como ficam os fluxos em casos complexos (como os que você trouxe).

Na prática, o que você está percebendo – e que muita gente vive – é uma cultura de aversão à decisão, em que todo mundo tenta “dividir” ou “diluir” a responsabilidade, de aplicar o princípio TMR (Tira o Meu da Reta). Mas isso não parece compatível com o que a Lei desenhou para os papéis das funções-chave do ciclo da contratação.

Uma ideia bacana pode ser o uso dessas três situações em estudos de caso para discutir internamente e, a partir delas, construir ou revisar uma matriz de responsabilidades. Isso pode ajudar a tirar o agente do papel de carimbador e recolocá-lo no lugar certo: condutor do procedimento, apoiado – e não substituído – pela área técnica.

Esperamos (eu e a IA) ter contribuído.

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