*Texto escrito com a ajuda do Claude.ai, porém com o uso de experiência real.
Introdução
A Lei nº 14.133/2021 trouxe profundas mudanças na estruturação dos processos de contratação pública, com especial ênfase na fase preparatória ou de planejamento. Nesse contexto, surgem frequentes dúvidas sobre os limites de atuação da assessoria jurídica. Qual é, afinal, seu papel? Até onde deve ir sua análise? O que compete ao jurídico e o que pertence a outros setores? Este artigo busca esclarecer essas questões, delimitando com precisão o papel da assessoria jurídica na fase de planejamento das contratações públicas, a partir de situações práticas que frequentemente geram confusão institucional.
1. A fase de planejamento e seus múltiplos atores
Conforme o art. 18 da Lei nº 14.133/2021 e os decretos estaduais que regulamentam a matéria, a fase de planejamento compreende diversos atos preparatórios que vão desde a oficialização da demanda até a elaboração das minutas de edital e contrato. Essa fase inclui a elaboração do Estudo Técnico Preliminar, do Mapa de Riscos, do Termo de Referência ou Projeto Básico, a realização da pesquisa de preços e, ao final, a análise jurídica dos documentos produzidos.
Trata-se de uma fase essencialmente multidisciplinar, que envolve diversos atores com competências distintas. O setor requisitante define as necessidades técnicas e operacionais. O setor de planejamento estrutura a contratação e dimensiona os recursos necessários. O setor de compras realiza a pesquisa de mercado e organiza a documentação. O setor orçamentário atesta a disponibilidade de recursos. E a assessoria jurídica, por fim, analisa os aspectos legais do processo preparado pelos demais setores.
Essa divisão de competências não é acidental. Reflete a complexidade das contratações públicas modernas e a necessidade de expertise específica em cada etapa. Compreender essa divisão é fundamental para que cada órgão atue dentro de seus limites, evitando sobreposições, lacunas e, principalmente, a paralisia administrativa que resulta da confusão de papéis.
2. O papel da assessoria jurídica segundo a Lei 14.133/2021
O art. 53 da Lei nº 14.133/2021 estabelece com clareza o papel da assessoria jurídica ao dispor que os instrumentos convocatórios e contratos serão previamente examinados e aprovados por assessoria jurídica da Administração. A norma delimita, portanto, um papel de exame e aprovação, não de gestão, investigação ou controle dos aspectos não jurídicos do procedimento.
A assessoria jurídica deve analisar os aspectos estritamente jurídicos do processo, verificando a legalidade da contratação pretendida, a adequação da modalidade licitatória escolhida, a conformidade das minutas com os modelos-padrão e com a legislação vigente, a presença dos requisitos legais obrigatórios e a eventual existência de vícios que possam gerar nulidade. Sua função é garantir que o processo esteja juridicamente adequado para prosseguir, identificando óbices legais que impeçam a contratação ou que exijam correção prévia.
Essa delimitação legal não é casual. O legislador compreendeu que a assessoria jurídica possui expertise específica em direito, não em engenharia, medicina, tecnologia da informação ou qualquer outra área técnica. Por isso, limitou sua atuação ao campo da legalidade, reservando às demais áreas as decisões que lhes são próprias. Quando a assessoria jurídica extrapola esse papel, invadindo competências de outros setores, gera-se confusão institucional, atraso nos processos e insegurança jurídica para todos os envolvidos.
3. O que não compete à assessoria jurídica
Tão importante quanto compreender o que a assessoria jurídica deve fazer é entender, com clareza, o que ela não deve fazer. A primeira e mais importante distinção refere-se ao mérito administrativo. Não compete à assessoria jurídica avaliar a conveniência e oportunidade da contratação, questionar as escolhas técnicas do projeto, definir quantitativos necessários, estabelecer especificações técnicas dos produtos ou serviços, ou determinar o momento ideal para contratar. Essas são decisões discricionárias da autoridade administrativa competente, fundamentadas em critérios técnicos, operacionais e de gestão que fogem à esfera jurídica.
A assessoria jurídica também não deve exercer funções de controle interno. Não lhe compete auditar minuciosamente o preenchimento de checklists administrativos, fiscalizar o cumprimento de prazos gerenciais internos, revisar planilhas de custos em seus aspectos técnicos ou conferir vírgulas e formatações de documentos. Essas são funções típicas da Controladoria e dos órgãos de auditoria interna, que possuem metodologia e expertise próprias para exercer o controle da gestão administrativa.
Tampouco compete à assessoria jurídica realizar investigações. Não deve investigar possíveis vínculos entre empresas participantes, apurar fraudes ou conluios, verificar idoneidade de fornecedores ou buscar provas de irregularidades com base em meras suspeitas. Essas são atribuições dos órgãos de controle externo e interno, como o Tribunal de Contas, a Controladoria Geral e o Ministério Público, bem como da Comissão de Licitação durante a fase competitiva, quando elementos concretos de irregularidade se manifestarem.
Por fim, a assessoria jurídica não deve fazer análise técnica. Não lhe cabe avaliar se uma especificação técnica é adequada, questionar quantitativos estimados por área técnica especializada, opinar sobre metodologias técnicas de trabalho, ou definir se é mais vantajoso comprar ou locar determinado bem, salvo quando houver ilegalidade manifesta. São questões de competência técnica do setor requisitante, que possui conhecimento especializado da matéria.
4. Exemplos práticos de extrapolação de competência
A experiência prática revela situações frequentes em que a assessoria jurídica extrapola seus limites, gerando obstáculos desnecessários ao processo administrativo. Um exemplo comum ocorre quando a assessoria levanta suspeitas sobre vínculos entre empresas participantes da pesquisa de preços, fundamentando-se apenas em coincidências superficiais como sobrenomes comuns entre sócios. A observação de que determinada coincidência “salta aos olhos” e merece esclarecimento não possui fundamento jurídico quando a legislação não estabelece qualquer vedação a essa situação.
A jurisprudência do Tribunal de Contas da União é pacífica ao afirmar que não existe vedação legal à participação, no mesmo certame licitatório, de empresas do mesmo grupo econômico ou com sócios em relação de parentesco. A demonstração de fraude à licitação exige a evidenciação do nexo causal entre a conduta das empresas e a frustração dos princípios da licitação. A simples presença de sócios em comum não constitui conduta vedada pelo ordenamento jurídico. Investigar tais vínculos, quando não há elementos concretos de irregularidade, é função dos órgãos de controle, não da assessoria jurídica na fase preparatória.
Outro exemplo frequente de extrapolação ocorre na análise de checklists administrativos. É comum encontrar pareceres jurídicos que listam dezenas de observações sobre o preenchimento de formulários de controle, apontando campos não preenchidos, códigos de documentos que não correspondem exatamente ao solicitado, ou ausência de informações secundárias em planilhas gerenciais. Essas observações confundem instrumento de controle administrativo com requisito de validade jurídica. Os checklists são ferramentas de autoavaliação e organização interna da documentação. Sua finalidade é auxiliar a gestão do processo, não criar óbices formais ao prosseguimento da contratação.
Um terceiro exemplo refere-se a observações sobre aspectos de planejamento administrativo que não possuem natureza jurídica. Quando a assessoria jurídica aponta que um documento prevê início de licitação no primeiro semestre mas o processo já está no segundo semestre, está fazendo observação sobre cronograma e gestão de prazos, não sobre legalidade. Não há norma jurídica que torne ilegal o atraso administrativo em relação a previsão inicial de prazo. Trata-se de questão gerencial, que deve ser endereçada internamente pela administração do órgão, mas que não constitui óbice jurídico ao prosseguimento do processo licitatório.
5. Quando a assessoria jurídica deve ir além
Estabelecidos os limites da atuação, é necessário também identificar as situações em que a assessoria jurídica não apenas pode, mas deve fazer observações mais amplas. A primeira dessas situações ocorre quando há ilegalidade manifesta no processo. Se a modalidade licitatória escolhida é claramente inadequada ao objeto, se a descrição do objeto é excessivamente genérica violando a lei, se há ausência de documento cuja apresentação é obrigatória por expressa disposição legal, se prazos legais não foram observados, ou se há vício que pode gerar nulidade do processo, a assessoria jurídica tem o dever de apontar o problema e exigir sua correção antes do prosseguimento.
A segunda situação refere-se à orientação preventiva. A assessoria jurídica pode e deve sugerir melhorias que reduzam riscos jurídicos futuros, melhorem a fundamentação legal do processo, ou previnam questionamentos dos órgãos de controle. A diferença fundamental é que essas sugestões devem ser claramente apresentadas como recomendações de aperfeiçoamento, não como óbices ao prosseguimento. O parecer deve deixar claro que a contratação pode prosseguir, mas que determinadas melhorias reduziriam riscos ou confeririam maior segurança jurídica ao processo.
A terceira situação ocorre quando há omissão de requisito legal específico. Se o Estudo Técnico Preliminar não contém elemento expressamente exigido pela lei, como a análise de soluções de mercado prevista no art. 18 da Lei 14.133/2021, a assessoria jurídica deve apontar a omissão e considerar que há óbice jurídico ao prosseguimento até a complementação. Não se trata aqui de opinar sobre qual solução é melhor do ponto de vista técnico ou econômico, mas de exigir o cumprimento de requisito legal. A análise do mérito da decisão continua sendo da área técnica, mas a existência da análise é requisito de legalidade.
6. O fenômeno dos pareceres defensivos
Um fenômeno preocupante na administração pública contemporânea é o crescimento dos chamados pareceres defensivos. Trata-se de pareceres nos quais a assessoria jurídica, temendo responsabilização futura, multiplica recomendações sobre aspectos não jurídicos, levanta suspeitas sem fundamento concreto, transfere responsabilidades para outros setores, paralisa processos por questões meramente formais e invade competências de outros órgãos. O objetivo velado é criar um registro extenso que demonstre suposto zelo, mas que na prática serve para transferir para o gestor a decisão sobre aspectos que deveriam ser juridicamente delimitados.
Esse tipo de parecer gera consequências negativas graves para a administração pública. Atrasa processos administrativos sem ganho efetivo de legalidade. Cria paralisia decisória, pois os gestores ficam inseguros sobre o que podem ou não decidir. Confunde os papéis institucionais, fazendo com que ninguém saiba exatamente qual é sua responsabilidade. Reduz a eficiência administrativa, gerando retrabalho e desperdício de recursos. E, paradoxalmente, desmoraliza a própria assessoria jurídica, que passa a ser vista como obstáculo burocrático e não como órgão de apoio à gestão.
A quem beneficia esse tipo de postura? A rigor, a ninguém. O gestor fica inseguro e não consegue tomar decisões com clareza sobre sua margem de discricionariedade. O processo atrasa, prejudicando o atendimento ao interesse público. A própria assessoria jurídica perde credibilidade e passa a ser percebida como entrave e não como parceira institucional. O resultado é uma administração menos eficiente, mais burocrática e mais lenta, exatamente o oposto do que a Nova Lei de Licitações pretendeu alcançar ao valorizar o planejamento e a governança das contratações.
7. O modelo ideal de parecer jurídico
Um bom parecer jurídico na fase de planejamento deve reunir algumas características essenciais. Primeiro, deve ser objetivo. Isso significa ir direto ao ponto, identificar com clareza os problemas jurídicos concretos que eventualmente existam, e não se perder em formalidades irrelevantes ou em observações sobre aspectos não jurídicos. O parecer não deve ser uma lista interminável de recomendações genéricas, mas uma análise focada nos pontos que efetivamente importam do ponto de vista da legalidade.
Segundo, o parecer deve ser conclusivo. A assessoria jurídica precisa responder com clareza a pergunta fundamental que lhe é feita: há ou não há óbice jurídico ao prosseguimento do processo? Se há óbice, qual é ele especificamente e como pode ser sanado? Se não há óbice, isso deve ser afirmado expressamente, para dar segurança ao gestor de que pode prosseguir com a contratação. Pareceres que apenas levantam dúvidas sem concluir, ou que transferem para o gestor decisões sobre aspectos jurídicos, não cumprem sua função institucional.
Terceiro, o parecer deve respeitar as competências de cada setor. Não deve invadir o mérito administrativo, que pertence à autoridade competente. Não deve fazer papel de auditor ou controlador, que são funções de outros órgãos. Não deve investigar fatos, o que compete aos órgãos de controle e apuração. Deve se ater ao que lhe compete: análise de legalidade. Quando respeita esses limites, a assessoria jurídica exerce seu papel com propriedade e ajuda efetivamente o processo administrativo.
Quarto, o parecer deve ser útil. Deve ajudar o gestor a decidir com segurança jurídica, apontando claramente o que pode e o que não pode ser feito. Não deve criar obstáculos desnecessários ou multiplicar exigências sem fundamento legal. Deve apontar soluções, não apenas problemas. Um parecer que apenas aponta problemas sem indicar como resolvê-los, ou que cria mais dúvidas do que esclarecimentos, não é um parecer útil à administração pública.
8. Estrutura sugerida para o parecer
A estrutura de um parecer adequado pode seguir um modelo relativamente simples. Inicia-se com um relatório que apresenta brevemente o objeto do processo e os principais documentos que o instruem. Não se trata de reproduzir todo o processo, mas de contextualizar suficientemente a análise que será feita. Em seguida, passa-se à análise jurídica propriamente dita, que deve responder a algumas perguntas fundamentais de forma direta e objetiva.
A modalidade licitatória escolhida está adequada ao objeto? As minutas de edital e contrato estão conformes aos modelos-padrão aprovados pela Procuradoria Geral? Os documentos obrigatórios previstos na legislação estão presentes nos autos? Há algum vício jurídico que comprometa a legalidade do processo? Essas perguntas, respondidas de forma clara e fundamentada, constituem o núcleo da análise jurídica e permitem identificar se há ou não óbices ao prosseguimento.
Caso haja necessidade de ajustes, o parecer deve apresentar recomendações específicas, limitadas aos aspectos jurídicos. Ajustar determinada cláusula do contrato para conformidade com a lei. Incluir fundamentação legal em determinado item do edital. Corrigir prazo que não observa disposição normativa. As recomendações devem ser pontuais, objetivas e juridicamente fundamentadas. Não devem ser dezenas de observações genéricas sobre aspectos formais ou administrativos, mas apontamentos específicos sobre questões que efetivamente comprometem a legalidade.
Por fim, a conclusão deve ser clara e direta. Se não há óbice jurídico ao prosseguimento, isso deve ser afirmado expressamente, ainda que com ressalvas sobre o atendimento das recomendações apresentadas. Se há óbice, deve-se indicar especificamente qual é e o que precisa ser feito para saná-lo. Em qualquer caso, o parecer deve deixar claro que as questões de mérito técnico e administrativo são de responsabilidade da autoridade competente, não da assessoria jurídica.
9. Conclusão
O papel da assessoria jurídica na fase de planejamento das contratações é essencial, mas delimitado pela lei e pela natureza de sua expertise. Deve analisar a legalidade do processo, verificar a conformidade das minutas com a legislação e com os modelos-padrão, identificar óbices jurídicos que impeçam o prosseguimento e orientar juridicamente o gestor nas questões que envolvam interpretação ou aplicação de normas. Não deve, por outro lado, avaliar o mérito administrativo das decisões, exercer funções de controle interno ou auditoria, realizar investigações sobre fatos, ou opinar sobre aspectos técnicos que fogem à sua competência.
A regra fundamental que deve orientar a atuação da assessoria jurídica é simples: seu papel é garantir a legalidade do processo, ajudando-o a prosseguir dentro dos limites da lei, e não criar obstáculos desnecessários que paralisem a gestão. Quando a assessoria jurídica compreende e respeita seu papel, atua com objetividade, é conclusiva em suas manifestações e respeita as competências dos demais setores, torna-se instrumento essencial para uma administração mais eficiente, mais ágil e juridicamente mais segura.
A clareza na definição de papéis institucionais beneficia a todos. O gestor público pode exercer suas atribuições com segurança, sabendo exatamente quais são os limites legais de sua atuação. A assessoria jurídica cumpre sua função sem se sobrecarregar com atribuições que não lhe competem. Os órgãos de controle podem exercer suas funções de fiscalização sem confusão sobre as responsabilidades de cada ator. E, principalmente, o interesse público é melhor atendido, com processos mais céleres, decisões mais seguras e recursos públicos utilizados com maior eficiência.
A assessoria jurídica que compreende seu papel é aquela que protege efetivamente a administração pública, garantindo a legalidade de seus atos sem paralisar a gestão. É aquela que distingue o essencial do acessório, o jurídico do administrativo, a legalidade do mérito. É aquela que, ao final, pode afirmar com segurança: este processo pode prosseguir, pois está juridicamente adequado. Ou, quando necessário, pode dizer com igual clareza: este processo não pode prosseguir até que seja corrigido determinado aspecto específico. Em ambos os casos, cumpre sua missão institucional de garantir que a administração pública atue dentro da lei, com eficiência e em benefício da sociedade.