Parece que a proposta de Decreto que regulamenta e estabelece a utilização do Cartão de Pagamento do Governo Federal - CPGF informada pelo @Ravel_Rodrigues_Ribe foi tão bombardeada de críticas que subiu no telhado.
Desde o início do ano, a tal proposta consta na Planilha de Atos Normativos e Estágios de Regulamentação da Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021 disponibilizada no Compras.gov.br com a observação de que “aguarda direcionamentos acerca elaboração de nova minuta pela equipe técnica”.
O que eu achei mais curioso nessa proposta é o tratamento dado à hipótese do §2º do art. 95 da Lei nº 14.133, de que seria uma nova hipótese de uso do CPGF (que nada teria a ver com as hipóteses de suprimento de fundos previstas no art. 45 do Decreto nº 93.872, de 23 de dezembro de 1986, e nem com o uso do cartão para compras por dispensas em razão do valor previsto no §4º do art. 75 da Lei nº 14.133, de 2021). Lembremos que o §2º do art. 95 da Lei nº 14.133 diz que as pequenas compras ou prestação de serviços de pronto pagamento, assim entendidos aqueles de valor não superior a R$ 10.000,00 (dez mil reais), podem ser feitas por contrato verbal.
Para os órgãos Sisg, o que temos de novo desde a última postagem deste tópico é a publicação da Instrução Normativa Seges/MGI nº 11, de 29 de março de 2023, que autoriza a aplicação do Decreto nº 5.355, de 25 de janeiro de 2005, para:
I - pagamento das despesas com compra de bens e prestação de serviços, de que dispõe o inciso I do art. 40 da Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021
O dispositivo mencionado trata do planejamento de compras com as condições de aquisição e pagamento semelhantes as do setor privado. Parece englobar a hipótese das compras por dispensas em razão do valor pagas preferencialmente por cartão de pagamento com o extrato divulgado e mantido no Portal Nacional de Contratações Públicas - PNCP (§4º do art. 75 da Lei nº 14.133, de 2021).
Acontece que o PNCP não tem essa função ainda. A entrega está posicionada no 3º trimestre do Roadmap da Seges para 2023 sinalizada como não concluída.
O Decreto nº 5.355, de 2005, nada fala de PNCP (visto que o Portal nem existia na época), tampouco fala de publicizar as faturas do cartão.
Passemos às normas complementares a esse Decreto, que são duas:
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Portaria MP nº 41, de 4 de março de 2005, que estabelece normas operacionais relacionadas ao CPGF para adesão ao contrato firmado pela União e a instituição financeira, além de estabelecer novas hipóteses de uso. Por ser norma de cunho operacional, parece ser aplicável no âmbito das contratações da Lei nº 14.133.
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Portaria nº 90, de 24 de abril de 2009, que institui o Sistema do Cartão de Pagamento - SCP, com o objetivo de detalhar a aplicação de suprimento de fundos concedido por meio do CPGF. Por ser específica do suprimento de fundos, não parece se aplicar a dispensas de licitação.
Ambas as Portarias também não tratam de publicizar faturas. A Portaria MP nº 90, de 2009, fala sobre o SCP que disponibiliza o detalhamento dos gastos no cartão apenas no Portal da Transparência.
II - Para o regime de adiantamento, por suprimento de fundos, de que tratam os arts. 45, 46 e 47 do Decreto nº 93.872, de 23 de dezembro de 1986
Diferente da proposta de Decreto submetida à consulta pública, a Instrução Normativa não menciona o §2º do art. 95 da Lei nº 14.133, deixando no ar duas interpretações cabíveis:
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essa hipótese legal não se trata do suprimento de fundos e ainda não está regulamentada (embora a Lei não faça menção expressa a regulamento); ou
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essa hipótese legal se confunde com as hipóteses de suprimento de fundos tratadas no art. 45 do Decreto nº 93.872, de 23 de dezembro de 1986.
O art. 45 do Decreto nº 93.872, de 1986, tira seu fundamento de dois dispositivos:
Considerando que a Lei nº 4.320 só fala de regime de adiantamento para despesas definidas em Lei e o Decreto-Lei nº 200 (que tem força de Lei) só se refere a despesa não atendível pela via bancária (o que na época em que foi editado era uma situação frequente, visto que contas bancárias não eram tão populares), o que temos na verdade é que as hipóteses do art. 45 do Decreto nº 93.872 estavam muito próximas (ou até mesmo além) da linha tênue que limita o poder de regulamentar as disposições legais que existiam na época, embora devamos ter em mente que esse Decreto foi emitido sob a égide da famigerada Constituição Federal de 1967, reescrita pela ainda mais famigerada Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969.
Dito isso, na minha visão, é claro que o §2º do art. 95 da Lei nº 14.133 estabelece uma regra geral sobre contratos administrativos que, de certa forma, limita o disposto o art. 45 do Decreto nº 93.872, de 1986, especialmente seus incisos I e II, que falam de “despesas eventuais que exijam pronto pagamento” e “despesas de pequeno vulto (…) [dentro de] limite estabelecido por Portaria do Ministro da Fazenda”.
Primeiro que a Lei nº 14.133, de envergadura superior ao Decreto Presidencial, conceituou “pequenas compras” e “prestação de serviços de pronto pagamento” como “aqueles de valor não superior a R$ 10.000,00 (dez mil reais)”. É necessária muita ginástica interpretativa para assumir que “despesas de pequeno vulto” são diferentes de “pequenas compras” e que “despesas eventuais de pronto pagamento” nada tem a ver com “serviços de pronto pagamento”, ainda mais considerando que a única coisa que tínhamos em Lei até então era que o suprimento de fundos cabia para despesa não atendível pela via bancária. Nessa perspectiva, esse dispositivo da Lei nº 14.133 teria derrubado a definição desse valor limite pelo Ministro da Fazenda, uma vez ela já definiu esse limite em R$ 10.000,00 (dez mil reais).
Mas esse não parece ter sido o entendimento que prosperou nos gabinetes do Poder Executivo federal, pois foi editada a Portaria Normativa MF nº 1.344, de 31 de outubro de 2023 (que não retira seu fundamento da Lei nº 14.133), que, além de estabelecer novos limites para o suprimento de fundos nas hipóteses do art. 45 do Decreto nº 93.872, define novos critérios para “fracionamento de despesa” que parecem tangenciar a noção que tínhamos disso a partir da leitura do §1º do art. 75 da Lei nº 14.133 c/c §§ 1º e 2º do art. 4º da Instrução Normativa Seges/ME nº 67, de 8 de julho de 2021.
Ou seja, o assunto que já era meio complicado de entender, parece que piorou.
Por fim, peço a manifestação dos caros colegas a respeito da operacionalização da compra por dispensa de licitação com uso do cartão de pagamento. Já é possível fazer? Alguém já fez? O fato de o PNCP não possuir a função de divulgar a fatura limita seu uso? Como o CPGF deve ficar no nome de um servidor, seria esse servidor o ordenador de despesas ou o responsável pelo setor de contratações?
Visto que nem a minuta de Termo de Referência para compra direta de agosto de 2023 da Advocacia-Geral da União - AGU traz a opção de uso do CPGF como forma de pagamento, embora a AGU cobre pelo uso do cartão ou a justificativa por não usá-lo na Lista de Verificação para contratação direta de junho de 2022, as contribuições de vocês serão muito bem vindas.