Atas de Registro de Preços - Reportagem do Fantástico 09/03/2025

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Não podemos generalizar, pois cada caso deve ser analisado individualmente. No entanto, é inegável que o mercado de venda de atas de registro de preços é uma realidade preocupante. A pressão sobre os gestores que querem agir corretamente pode ser enorme, especialmente no final do ano. Tudo chega pronto: Estudo Técnico Preliminar (ETP), Termo de Referência (TR) e pesquisa de preços.

No caso das contratações de TI, que são naturalmente complexas, há situações em que ETPs são elaborados em um único dia, muitas vezes sendo meras reproduções da ata original. Agora, com o uso do ChatGPT, tenta-se disfarçar a cópia, tornando o problema ainda mais sofisticado.

Além disso, há órgãos que atuam como verdadeiras “barrigas de aluguel” para essas atas, sem realizar qualquer contratação direta, mas gerenciando quantidades muito superiores ao seu próprio orçamento. Já testemunhei casos em que uma universidade participou de uma ata para contratação de solução de segurança da informação, com um quantitativo tão elevado que o valor estimado ultrapassava em mais de uma década todo o orçamento anual de TI da instituição.

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Tratamos do risco em caronas na 4a edição do livro de fraudes. Cito trechos:

A superestimativa também pode ser usada para gerar o esquema ‘barriga de aluguel’.

Na ‘barriga de aluguel’ há superestimativa em registro de preços, ampliando espaço para caronas, gerando um catálogo de vendas para a empresa fornecedora, que ela oferece aos potenciais compradores como mecanismo de simplificação e facilidade de aquisição (Acórdão TCU nº 80/2022-P).

[…] extremamente grave […] quantitativos muito superiores àqueles que serão demandados. Com isso, o limite para adesão passa a ser gigantesco e artificialmente criado, na prática que se intitula “barriga de aluguel” (Acórdão TCU nº 1.668/2021-P)

2.1.10 Carona em SRP

No Rio de Janeiro, em hospitais da Polícia Militar, foi comprovado que a maior parte das compras ocorria por meio de carona a Atas de Registro de Preços, para facilitar fraude, pela possibilidade de escolher, a partir de licitações já realizadas por outros órgãos, empresas que topassem o esquema. Uma das fraudes mais emblemáticas foi a aquisição simulada de 75 mil litros de ácido, somando quantia milionária. A carona foi formalizada, segundo a denúncia, com documentos falsos, incluindo o termo de referência e o atesto do recebimento. O produto nunca foi entregue. A média de consumo por ano não ultrapassava 250 litros. Levaria 300 anos para usar o que foi pago (www.mprj.mp.br, denúncia do Processo nº 2014.01140684).

Em 2022, a PF deflagrou a Operação Free Rider, envolvendo fraudes na compra de medicamentos e insumos hospitalares. Segundo as investigações, uma prefeitura realizava adesões fraudulentas a Ata de Registro de Preços de outros municípios, sem que houvesse vantagem. Em um dos casos, havia o sobrepreço de 215%. Havia fortes indícios de negociações de propina antecedendo as contratações.

Um caso curioso aconteceu numa prefeitura do interior do Rio de Janeiro. Para comprar novos aparelhos de ar-condicionado, pegaram carona numa prefeitura de Alagoas. O fornecedor registrado era de outro munícipio fluminense. Os preços estavam, segundo a reportagem, muito superiores aos valores ofertados na Internet, sem levar em conta o potencial desconto na compra de várias unidades. A prefeitura compradora alegou que, além dos aparelhos, havia insumos, como tubos de cobre, fios e disjuntores, bem como adaptações da parte elétrica e mão de obra para instalação e que vários outros municípios tinham aderido à mesma Ata, o que comprovaria o negócio como vantajoso para a administração pública (extra.globo.com, noticia de 26.06.2021).

Em auditoria nos hospitais federais do Rio de Janeiro, o TCU encontrou uma compra, por carona, de um equipamento para manipulação de medicamentos oncológicos. Mais de quatro anos depois da compra, o equipamento ainda não tinha sido instalado, permanecia encaixotado, sem uso. A direção admitiu que o melhor seria doar a máquina, porque não havia condições para ser utilizada. Esse tipo de problema pode ser uma grave falha de planejamento, mas também pode indicar potencial de direcionamento de compras inúteis para favorecer acordos com fornecedores (Acórdão nº 999/2017-P).

Na carona, há ainda o risco de planejamento reverso, como enfrentado pelo TCU nos Acórdãos nº 609/2020-P e 1264/2019-P. Tratava-se de armazenamento de dados que, na visão do órgão de controle, subverteu a ordem dos procedimentos. Primeiro, foi escolhido o produto, decidiu-se pela carona e só depois houve levantamento de necessidade e documentação do planejamento, sem analisar outras soluções disponíveis, criando um Termo de Referência direcionado. Para o TCU, a carona deve ser precedida de planejamento prévio e criteriosa análise do objeto da ata.

Numa capital do Centro Oeste, a CGU encontrou prejuízo de 130% na compra de móveis escolares. O órgão público tinha uma Ata de Registro de Preços própria, mas preferiu aderir à Ata de um órgão distante 1.700km, pagando muito mais caro. As especificações das cadeiras e carteiras eram diferentes, mas a CGU entendeu que não havia justificativa plausível para abandonar os produtos que o próprio órgão comprador havia especificado na sua licitação (auditoria.cgu.gov.br/download/2947.pdf).

Corroborando o comentário de que “não podemos generalizar”, indico a reflexão do amigo Ronny Charles disponível em Ronny Charles Torres no Instagram: "Pessoal, ontem demorei a dormir depois de ver a interessante reportagem do Fantástico e resolvi hoje pela manhã trazer uma singela reflexão sobre o desvirtuamento da adesão a ARP. Não quero entrar no mérito dos fatos expostos na reportagem (isso deve ser feito no processo com as garantias de defesa aos envolvidos, órgãos e empresas citadas), mas provocar alguma reflexos sobre a adesão em em si e como poderemos construir soluções para evitar seu desvirtuamento. Se tiver outras sugestões, pode colocar aqui nos comentários. Boa semana a todos e a todas."

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