Parece que passou uma década, mas foi no ano retrasado (2019) que participei de um seminário presencial promovido pela ANTT sobre a temática de Governança, Riscos e Integridade.
Na ocasião fomos agraciados com dois dias de palestras da mais alta qualidade, além de uma estrutura incrível de acomodação e interação com o público.
A palestra de abertura, denominada “Melhoria da Governança Pública” foi conduzida pelo talentoso Jetro Coutinho do Tribunal de Contas da União (TCU). Na oportunidade, Jetro fez uma apresentação impecável e claríssima que garantiu o entendimento, até mesmo de leigos, sobre o que a o tema de Governança.
Jetro Coutinho optou por trazer o nascedouro do conceito de Governança explicando o problema de agência, contando então a história de Manoel e suas padarias.
Na história o padeiro criava um negócio promissor, que se desenvolvia a ponto de fazer o padeiro decidir em abrir outras lojas.
Ao abrir sua décima “filial”, Manoel então convidou José para administrar a nova loja. Com o passar do tempo, José, um jovem com espírito empreendedor e audacioso, começou a projetar novas receitas de pães, trocar de fornecedores para diminuir o custo do pão mesmo sem o aval de Manoel, que pretendia focar na tradição e menor quantidade de produtos para garantir maior qualidade.
Nascia ali então o problema de agência, que se dá quando o principal (Manoel) estipula as diretrizes e objetivos de um negócio, determinando seus interesses, como no caso a manutenção de uma padaria de tradição e de qualidade, e o agente (José) começa a divergir destes interesses ao aplicar o que pessoalmente acha ser o melhor para o negócio, como a expansão das vendas pela criação de novos produtos e a redução de custos.
Na palestra também fica muito bem elucidado o problema da assimetria da informação, vez que José passou a adquirir muitas informações para sustentar sua posição ao passo que Manoel não tem acesso a tais informações e não sabe sequer como obtê-las.
Muito embora o “dono do negócio” seja Manoel, este não deseja impor sua vontade acima de tudo, mas acredita que os clientes (destinatário de seus produtos) realmente desejam um negócio nos moldes que inicialmente idealizou.
Cabe então destacar que, no conflito de agência, assim como na Governança, a questão não se dá em descobrir quem manda mais, visto que neste caso o principal seria inexoravelmente beneficiado, mas sim em determinar de modo claro e evidente qual o verdadeiro interesse dos destinatários dos serviços (partes interessadas).
Apesar de simplista, a história apresentada é cativante e marca bem o que ocorre em instituições de todo caráter, sejam públicas, privadas e até mesmo os organismos internacionais. A diferença maior se dá em termos de escala, uma vez que a exponencialidade de tomadores de decisão e destinatários dos serviços acaba por multiplicar os conflitos de agência.
Agora imaginemos que Manoel, insatisfeito com a gestão de José decida, após seis meses, trocar a gestão da filial, colocando o filho mais velho, Vasco da Gama, na gestão da nova loja, que, contudo, passa a ter embates com o pai sobre qual o preço ideal dos pãezinhos.
Cansado de brigar com o filho, e sem vontade de impor suas decisões, nem argumentos técnicos e fáticos para tanto, Manoel então pede para a filha Carlota para substituir o primogênito em apenas três meses. Carlota possui um diploma de administração de empresas e cai como uma luva na estratégia do pai de consolidar seu negócio como referência no mercado de padarias.
Apesar de muito bem instruída e fazer com que os negócios do pai fossem multiplicados, aplicando novos padrões de processos de produção, organizando o pagamento de fornecedores e pessoal, o que impactando na gestão não só na nova loja mas também na gestão da padaria matriz, Carlota também começa a divergir do pai Manoel quando propõe que criem uma espaço para que os clientes da padaria possam sentar e consumir os produtos no próprio estabelecimento.
A ideia de Carlota é baseada em evidências fortíssimas, uma vez que esta realizou uma pesquisa de satisfação com os clientes, tanto na matriz quanto na filial, que demostraram que os clientes amavam a tradição e a qualidade dos produtos da padaria (principal interesse de Manoel) porém gostariam de também poderem marcar encontros no próprio local da padaria, em companhia de entes queridos, para consumir os produtos, tomar um cafézinho e, ao fim, seguirem com suas vidas cotidianas de forma mais leve.
Muito embora a ideia fosse alinhada com a expectativa dos clientes, Manoel nunca imaginou tal inovação, de modo que já havia tido experiência desagradáveis ao longo de sua vida, principalmente por ter sido garçom por muitos anos e viver situações delicadas com seus patrões, algo que não desejava repetir em seu negócio.
Assim, apesar da ótima administração e parceria desenvolvida com Carlota ao longo de um ano completo, os conflitos em relação aos rumos e futuro do negócio tornaram a relação arisca e Manoel novamente não queria se indispor com a filha, razão pela qual optou por pedir que esta procurasse um profissional competente para lhe substituir.
A filha, por sua vez, pessoa de boa índole e profissional competente, não desagradou o pai e assentiu ao seu pedido de encontrar um gerente com alinhamentos similares ao inicialmente proposto mas também grande visão de mercado e aptidões gerenciais.
Por fim, Manoel então encontrou Abílio, um gerente com formação profissional e experiência de mercado, que garantiu por fim uma parceria frutífera e duradoura ao negócio, pondo fim a uma jornada de conflitos e na dança das cadeiras que durou quase três anos desde a abertura da nova loja e as desavenças com os diversos gerentes, o que causou real prejuízo, visto ser justamente o período que representa - via de regra - a fase crítica de maturação quase todo novo negócio.
Se a troca de tomadores de decisão em um pequeno negócio podem ter repercussões negativas em seu desenvolvimento, tanto em termos de administração quanto em termos de Governança, se torna evidente que em um cenário maior, envolvendo grandes organizações, tal situação é ainda mais danosa.
Quando analisamos ainda a ocorrência no setor público adicionamos um outro agravante, uma vez que a sociedade é o principal destinatário dos serviços prestados, porém, por sua capilaridade, seu caráter heterogêneo e multiplicidade de atores, a dificuldade aumenta posto que não se pode determinar a noção exata de interesses gerais, sendo tal função relegada aos representantes eleitos.
Toda a reflexão e exposição ora apresentada culmina nos acontecimentos da última semana, em que logo na segunda-feira (28/03/2021), nos idos de março, o Presidente da República realizou trocas em diversos Ministérios, alguns de grande importância estratégica para o Governo.
Não desejo adentrar nas questões políticas que perpassam pelas escolhas dos novos Ministros e nas saídas e renúncias de seus antecessores. Faço isso não por receio do debate, mas por respeito à temática que me propus abraçar neste artigo.
Chamo a atenção para os impactos que as mudanças contínuas de Ministros leva à Governança Pública como um todo. De modo que, apesar se apresentar muito marcante na atual gestão, está longe de ser uma novidade no Poder Executivo.
Lembram do Jetro?
Então. No seminário que estavámos participando (eu como ouvinte e ele como palestrante) fora aberto um painel de perguntas, que representa nada mais nada menos do que o atendimento da expectativa das partes interessadas.
Na oportunidade pude participar ativamente do seminário lançando a pergunta que “qual seria sua percepção sobre a problemática da falta de continuidade nos cargos de gestão, principalmente em Ministérios, como evitar que afete a Governança?”, e, em consequência, Jetro Coutinho respondeu de que sim, é um problema, porém ser difícil de se evidenciar que a descontinuidade é o que causa o problema na Governança, razão pela qual a Auditoria por vezes não indica isso.
Indicou que no TCU, por exemplo, houve a garantia da estabilidade à diretores, e indicou que seria interessante se o nível de diretoria nos Ministérios houvesse a mesma garantia.
Alegou que no modelo ideal haveria uma entidade de formação de gestores (como atualmente já desenvolvido pela Escola Nacional da Administração Pública - ENAP) e que somente estes gestores formados poderiam assumir posições de gerência.
Só a título de curiosidade, lá no TCU, tirando os agentes políticos (Ministros, entre os quais o Presidente do Tribunal), tem-se como funções comissionadas o âmbito estratégico (formado pelos secretários-gerais), o âmbito tático (formado pelos secretários) e o âmbito tático-operacional (diretores). O âmbito estratégico segue o mandato do Presidente do TCU, geralmente de 2 anos. Assim, é muito difícil um secretário-geral ser reconduzido por mais de uma gestão. No âmbito tático, há norma interna que limita em 6 anos o tempo máximo que um secretário pode permanecer na mesma secretaria. Assim, após completar 6 anos em um lugar, é obrigatória a mudança. Já no âmbito tático-operacional, é onde encontramos a maior perenidade dos gestores.
Ocorre que a troca de Ministros de Estados, que ocorre no presente momento, é uma marca forte da Governança Pública do Poder Executivo desde sempre e gera problemas como a assimetria de informação, e descontinuidade de políticas públicas iniciadas por um gestor e assumida por outro, geralmente de diferentes origens, matizes e ideologias, mesmo que em um mesmo Governo.
Chamo atenção então para situação tanto análoga quanto divergente, em que uma a Controladoria-Geral da União (CGU), nesta mesma segunda-feira, apresentou mudanças substanciais em seus cargos de direção, com destaque para a substituição de Claudia Taya, Auditora Federal de Finanças e Controle, pelo também Auditor Roberto Cesar de Oliveira Viegas, no comando da Secretaria de Transparência e Prevenção da Corrupção.
Ao contrário do observado no Poder Executivo, a dança de cadeiras na CGU não se dá de forma tão sistemática e periódica, à exemplo de que o atual Ministro Wagner Rosário fora o único a permanecer do governo do ex-presidente Michel Temer no governo atual.
De igual modo, internamente, o este mesmo Ministro promove tanto a manutenção de servidores em cargos de direção baseados na competência quanto a garantia do alinhamento destes gestores com os objetivos estratégicos determinados em planos de longo prazo.
As trocas realizadas vem então após o regular desenvolvimento de um trabalho sólido por tais gestores, vide o exemplo em que Claudia Taya, que, após ter notória passagem pela secretaria supracitada, agora “sobe” ao cargo de assessora do próprio Ministro e continuará seus trabalho desenvolvendo justamente ações em prol da Governança Pública.
Ou seja, na CGU, a competência representa preservação do gestor no cargo em que atua, e, em segundo momento garante sua “promoção” a posições ainda mais estratégicas. Logo, fica o recado que nem toda dança de cadeiras é ruim, apenas aquela em que os que sentam nas cadeiras deixam de dar continuidade ao que foi já foi construído, ou pior, não possuem capacidade técnica e profissional para o cargo em que passam a ocupar.
Pedro Henrique Souza
Especialista em Advocacia Empresarial, Responsabilidade Civil e Contratos, atua com foco em Governança Corporativa, Gestão de Riscos e implementação de Programas de Integridade e Sistema de Gestão de Compliance, tendo experiência em consultoria legislativa na Câmara dos Deputados e passagem pelo Poder Executivo Federal (Ministério do Trabalho. Atualmente é membro do IBGC (Instituto Brasileiro de Governança Corporativa) e Diretor no IBIP (Instituto Brasileiro de Integridade Pública) e Ouvidor da Rede Governança Brasil. Auditor Interno e Implementador Líder da ISO 37001:2017.